A crise da água é a turvação do espírito.
Por Vera Lessa Catalão *
"Em termos cósmicos a água é mais rara que o ouro".
Hubert Reeves
Na água lançamos os nossos fétidos esgotos. Na água lançamos a química mortal dos nossos adubos e pesticidas agrícolas. E a água leva rapidamente tudo que não queremos ver refletido. O que corre pelos nossos rios é a morte que cotidianamente produzimos, a nossa e de outras espécies. invertemos a cadeia da vida e não nos damos conta do poder que exercemos sobre a vida, nem do eco das nossas ações. A água oceânica de onde viemos, as águas planetárias que nos gestaram e nutriram, carregam hoje um presságio de morte.
Assim como um espelho d’água reflete o céu, a consciência humana reflete a ação criadora do homem no mundo. Turva a limpidez das águas, turvo o reflexo. A nossa crise atual é uma crise de consciência e de responsabilidade diante do potencial letal do nosso projeto civilizador. Como a água representa simbolicamente o recanto inconsciente do espírito onde as memórias rejeitadas são alojadas e a origem primordial dorme esquecida, nós fizemos dela o depósito da poluição que produzimos ao longo da nossa história.
Os pesquisadores da Organização Mundial de saúde afirmam que mais de 70% das doenças no planeta são provenientes da contaminação das águas. Do Fórum mundial da água realizado na Holanda em março de 2000 ouvimos o alerta sobre crise de água doce que ameaça a humanidade ainda nas primeiros décadas deste milênio. Em Paris, no ano de 1998, os especialistas anunciavam que 1 bilhão e 400 mil pessoas não têm acesso a água potável. No Brasil, em grandes cidades como São Paulo e Recife, racionamos água. No III Fórum Mundial da Água, realizado recentemente realizado em Kioto, no Japão, conhecemos os mais novos números da crise mundial das águas.
Se falta água limpa, salubre para aplacar nossa sede, falta consciência para zelar, preservar e despoluir nossas fontes e reservas de água de superfície e subterrânea. Mesmo nossas águas subterrâneas guardadas por milênios nós conseguimos poluir. A poluição invisível das águas profundas - ainda mais grave e de difícil de reversão – é a face escondida do quadro de degradação observada nas águas de superfície. E mesmo as chuvas que purificam as águas, em algumas regiões do planeta, tornam-se ácidas como resultado da poluição do ar.
O biólogo alemão Theodore Schwenk em sua obra « O caos sensível » constata que perdemos primeiro o contato espiritual com a água e hoje perdemos o contato com o elemento físico. Como contato espiritual ele define a compreensão profunda da natureza simbólica da água. Para o poeta alemão Novalis, a água é a matriz de todos os processos circulatórios, dotada de plasticidade, adaptabilidade a todos os espaços e relevos, elemento sensorial por excelência, meio ótimal de trocas, misturas e encontros.
O cientista francês Jacques Benveniste, autor da controvertida e instigante teoria sobre a memória da água, está convencido que este é o elemento que permite a comunicação entre as moléculas, mesmo quando distantes uma das outras. O que reitera a capacidade de mediação da água revelada nos mitos e nas artes.
Diante da perda de contato com a dimensão simbólica da água apontada por Theodore Schwenk, não é difícil perceber a razão pela qual a crise mundial da água espelha a crise de consciência da nossa civilização. Se não aceitamos o reflexo que a água nos devolve, nem a revelação das metáforas, não podemos recusar o que nos diz o nosso corpo que contém em média 70% de água, nas mesmas proporções do circuito planetário. Dentro de nós circula o elemento líquido em artérias, veias e capilares de modo muito semelhante ao sistema de irrigação das bacias hidrográficas. Faltam critérios éticos e decisão política para cuidar das nossas águas, assim como da sobrevivência planetária : a degradação de gente e ambiente são verso e reverso da nossa inconseqüente gestão da vida.
Atualmente, o « mercado » parece ser a força onipotente que dirige a consciência das nações, haja vista as declarações reiteradas do presidente americano George Bush quando recusa-se assinar o protocolo de Kioto para redução da emissão de Co2 na atmosfera, argumentando que este tipo de controle não corresponde aos interesses econômicos dos EUA.
Sem dúvida os governos têm um importante papel a desempenhar na solução desta crise, mas sabemos que não podemos esperar sentados por grandes revoluções. O século passado parece tê-las enterrado. Como compreendia o filósofo francês, Felix Guatarri, este é o tempo de revoluções moleculares. As transformações são fecundadas em indivíduos e pequenos grupos com grande poder de disseminação e enraízam-se na simplicidade dos gestos cotidianos.
Mesmo diante da força política e econômica que representa os EUA, eu acredito que nós, cidadãos planetários, temos relativa autonomia para mudar nosso cotidiano. Quem sabe simples gestos diários possam inverter o sentido dessa trajetória. O pequeno David não conseguiu vencer o gigante com ajuda de uma funda? Se o mercado é poderoso e onipresente, o consumo do cidadão é o ponto nevrálgico do sistema, semelhante a um ponto de acupuntura chinesa. Revestir de cuidado os gesto cotidianos poderá reverter essa magia insana que irriga de morte o tecido da vida.
A persistência da conspiração silenciosa produzida pelos pequenos grupos (revoluções moleculares de Felix Guattari) que resolveram adotar a ética do cuidado a que se refere Leonardo Boff e a estratégia ecológica dos 3 R ( reutilizar, reciclar e reduzir o consumo) conseguirão, quem sabe, um dia, deter o avanço desse gigante moderno de mil tentáculos, de muitos nomes e nenhuma alma.
No trabalho com educadores costumo dizer que quando fechamos uma torneira estamos permitindo a uma fonte o sagrado direito de fluir e a um rio o direito essencial de percorrer o vale. Quem sabe por uma ação responsável na vida cotidiana, nós, amorosos anônimos da água possamos devolver ao planeta Terra sua matriz perene de Vida e exclamar como Guimarães Rosa - o melhor de tudo é a água.
* Vera Lessa Catalão é especialista em educação ambiental e doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Paris VIII - França.
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